Vânia, ainda sonolenta e entediada com a
possibilidade da lâmpada estar queimada, acionou sem sucesso o interruptor para
baixo e para cima algumas vezes. No intuito de tirar um proveito maior da luz
difusa que invadia o espaço a partir do vidro empoeirado do basculante, num
gesto ligeiro e preciso, escancarou a cortina do box.
Estava se sentindo exausta. Tentou recordar o
que fizera no dia anterior... nenhuma lembrança vinha a sua mente. Forçou um
pouco mais a memória... nem mesmo uma fina recordação a se esgueirar pelas
paredes do esquecimento. Sabia-se somente ali, dentro do banheiro. Seus olhos
nos olhos que se espelhavam, os cabelos desgrenhados, o gosto de ferrugem na
boca, olheiras enormes e o susto: dentro de cada íris havia algo que parecia
ser a imagem de uma mulher nua de pernas abertas sobre a relva. Esfregou o
rosto com as mãos trêmulas e voltou a mirar-se. A imagem agora tomava uma parte
maior do seu globo ocular.
Compenetrou-se na tentativa de entender o que
estava acontecendo. Abriu o registro da pia, queria jogar um pouco d’água no
rosto, acordar disso que parecia ser um pesadelo. A torneira liberou um suave
olor de lavanda juntamente com um ruído alto e seco que fez com que Vânia
levasse um susto, caindo próximo à porta. Aproveitou a posição para refazer
cada passo até o momento em que se viu diante do espelho, dentro do banheiro.
“Banheiro!”. As palavras ainda cabiam na boca
e Vânia podia pronunciá-las: “Banheiro! Espelho... Mulher! Mulher?” Inebriada
com o forte cheiro de alfazema que tomava o pequeno banheiro, antes que jogasse
no mundo novamente o mesmo substantivo, lembrou-se da figura que agora em seus
olhos habitava, com os membros inferiores abertos e todo o verde cobrindo o
chão. “Mulher.” Duas mulheres, uma mulher, a mesma mulher em cada olho. Apenas
imaginava as formas e as cores, porém, não conseguia expressá-las, dizê-las,
descrevê-las em palavras.
Ao se levantar buscou o apoio da maçaneta
fazendo com que a porta abrisse, impelindo-a para a o que seria a área externa,
deixando-a diante de um cenário ainda mais curioso. Sentiu uma leve brisa
balançar os seus cabelos e o toque gelado beijar as suas bochechas. Havia um
silêncio, um silêncio pesado, um silêncio primitivo, um silêncio original e
absoluto. Ficou parada diante da floresta que se projetava por toda a extensão.
Ressoou em seu ouvido um zumbido. “Abelha”.
Num primeiro impulso reagiu abanando, remexendo o ar, acreditando que poderia
dessa forma afastar o inseto. A cada movimento das mãos o zunido aumentava,
fazendo com que Vânia se preocupasse na mesma proporção. Juntou suas forças e
se lançou em fuga entre a vegetação desconhecida. O som permanecia em seus
ouvidos, ressoando dentro de sua cabeça.
Clamou por ajuda através de
sons incompreensíveis, louca e desesperada em disparada rumo a qualquer lugar.
De sua boca, agora, saiam apenas grunhidos. Não havia ninguém com quem pudesse
estabelecer qualquer tipo de comunicação. Era ela, a mulher, perdida na
floresta. O seu passado era o limite do instante anterior; o presente, a
incerteza do futuro. Solitária e desvairada, desejosa de recordar algum traço
de uma possível realidade. Sua vida presa em incompreensíveis sucessões de
radicais acasos. Estatelou-se no chão, sentindo uma dor absurda em suas costas,
rompendo a pele e surgindo próximo a sua cabeça um ramo de amora. Seu corpo se
prendeu ao solo em fortes e visíveis raízes. Chorou em frutas doces que
manchavam as folhas e o chão.
Um comentário:
toda árvore é uma mulher que acordou num dia desses, Vânia...
Postar um comentário