quarta-feira, 15 de abril de 2009

curriculum vitae


foto: rafael rodriguez

Cheguei à beira do mar, olhei para o céu: avião. As ondas indo e vindo cavando buracos entre os meus dedos. O chão tingido de um vermelho-alaranjado, fim de tarde. Ao molhar os lábios, naquele movimento comum quando ansiamos falar algo, senti o gosto salobro. Procurei uma parte da areia ainda seca e sentei, pernas cruzadas e o espírito contemplando o horizonte.

É para amanhã, é para amanhã. Uma vida inteira resumida em alguns minutos, em algumas linhas. É para amanhã. Há anos satisfazia-me com o que era e o que conhecia, agora dimensiono o quanto que perdi e tento colocar o pensamento em dia. Sempre é tarde demais. Qualquer um falando de si ou do outro esboça narrativas em que cada palavra transforma-se num planeta, cada frase num sistema solar e por aí segue o rumo – e eu vou com minha nave que é um barquinho, em seu casco lê-se: promessa . Percorrerei rios de memórias, registrarei a pessoa que existiu e estará sendo a cada letra digitada. A página em branco, o ponto de partida.

Gosto de pensar em ser concha e vagar solitário na repetição das ondas. Construção e destruição.

Mar. Areia branca. Vento. Barcos de pesca. São os elementos que compõe a minha melancolia. Exercem em mim um jeito caiçara de estar no mundo. O peixe resignificado. Meu peixe.

Não sou quem sou agora, sou tudo o que fui e todos que passaram comigo. Corrijo, sou tudo o que fui e todo esse agora - que é uma sucessão de passados. Sou composto também de futuro, uma entidade inexistente, um jogo de projeções e acasos. O futuro é uma coisa que não é e que poderá vir a ser, imutavelmente descontrolado. Há quem cante que o futuro a deus pertence.

Chamam-me por um nome e desde pequeno acredito. A única certeza que tenho – até que as ciências provem o contrário – é que, assim como a todos os homens, constituo-me por possuir carne, osso e espírito – ou qualquer outra denominação para essa coisa que fala internamente.

Olhando as fotos antigas percebo o quanto de mim sempre existiu dentro de mim.

Cortar. Cortar.

Lembro do feijão diante da televisão, prato na mão e colher. Meu irmão se arrumando para a escola, minha mãe as pressas pois também tinha horário para chegar no trabalho. Meu pai na labuta o dia todo. Eu quietinho comendo o feijão bem temperado que mamãe sabia fazer - hoje já não é tão gostoso como antigamente, parece que falta alho e mais um pouquinho de sal. Mesmo assim, ainda aceito o feijão de minha mãe devido ao meu medo bobo de panela de pressão; ela traz sempre que possível (moro a duas horas e meia de distância da casa dos meus pais).

Quando pequeno trepava no muro, descascava o tijolo, esfarelava, juntava água e criava cogumelos ou ninhos de barro.

Cortar. Cortar.

Fiz uma viagem para uma outra cidade, de avião, não passou de meia hora. Lembro disso, é muito recente em minha memória e distante, bem distante, se levarmos em consideração o tempo cronológico. Foram três dias que mudaram a minha vida; revolução, tempestade interna. Ainda sinto o calor. O sol se pondo criando uma perspectiva entre dois prédios enormes. Natureza morta. Concretude. O Belo. E eu só.

Aparar as arestas da emoção.

Mesmo não acreditando muito, pedi força e coragem na virada do ano. Enfrentei a multidão, em meio a toda escuridão, deixei a água salgada e fria despertar alguma emoção. Os fogos explodindo e eu sozinho, perdido por querer, pedindo. Tenho muita força, mas sempre me faltou coragem. Olhando para os lados via pessoas felizes que brindavam na esperança de novos dias, semanas, meses. Eu estava feliz, mas era outra espécie de felicidade. Um se deixar e ficar, assim, se deixar e ficar. Não um se deixar ficar. Contemplar alegria às vezes é mais forte e sensível do que ser feliz.

Dançando ciranda, ganhei-perdi amigos e parentes (minha avó paterna e meu avô paterno); na verdade ganhei mais do que perdi. Aqueles que foram, moram dentro de mim e viverão para além cada vez que eu contar nossas histórias para os outros. Não me importo quanto ao existir ou não numa outra realidade, prefiro acreditar no real e possível do aqui e agora. Transcendência a partir da fala. Verbo, palavra. Invocação a nomes e situações, risadas e choros.


4 comentários:

Rosana Tibúrcio disse...

Com um currículo desses não há quem não te queira bem; não há como não ser sucesso...

Também tenho medo de panela de pressão, mas enfrento, senão as filhotas não comem feijão...rs
Beijos Rafael

Adriana Godoy disse...

Um texto tão rico de afetos, lembranças, impressões... A história de uma vida, através de fragmentos indeléveis.
O futuro pode chegar ou não, mas o seu pasado e o presente já valem e muito. Bonito, Rafael, seu curriculum vitae.Beijo.

Jonas Arrabal disse...

Lindo!!!
São imagens que compartilho. Seu feijão é sua madeleine...

Luiz Carias disse...

Ola amigo e blogueiro Rafael, como está?
Linda mensagem, saudades do nossa Obra em progresso e de seus lindos posts.
Saudoso abraço,
Luiz Carias.

raso

qual atalho, uma curva pro caminho do sossego - mas no fundo é raso; água bate no joelho nada - não é nada nunca foi tão fácil contud...