segunda-feira, 14 de março de 2011

formiga-faraó

Ela me disse uma vez que eu não devia escovar os dentes logo após beber Coca-Cola e eu quis saber o porquê. Deu uma resposta plausível e aceitei naquele momento, evitando assim qualquer contestação. No entanto, a voz dela repetindo a mesma sentença tornou-se constante; passei então a assumir todas a responsabilidades nas vezes seguintes em que cuidei dos dentes bem depois de ter bebido o refresco gasoso.

Foi quando um rato passou por debaixo da mesa, pensei que fosse um vulto qualquer, quiçá um espírito. Meu cabelo arrepiou de tanto medo, não pelo fato de poder ser um espírito... mais muito mais: por talvez uma barata ter passado por debaixo da mesa vindo a esconder-se em qualquer canto da copa, da sala, do quarto, da cozinha, do banheiro.

Ao fazer a higiene bucal percebi que o creme dental tinha acabado e pensei que ela poderia ter vindo até aqui e levado embora, pois temia que meus dentes todos ficassem deteriorados e o meu sorriso não seria mais inteiro; faltariam alguns dentes para fechar a mordedura e que por isso eu poderia ter algum derrame, dor na coluna, dor de auto-estima ou uma simples dor de dente.

Segui o vulto, na verdade, por onde ele poderia ter ido e deparei-me com uma fileira de formigas, daquelas que costumam aparecer magicamente, por feitiçaria, dentro do açucareiro. Percorriam todo o corredor nas partes que ligavam o piso de cêramica - uma calha preenchida por massa corrida, acho eu. Elas transitavam nesse espaço “entre”, nesse vão emporeirado; o piso todo sujo pois há uns quinze dias que não varria a casa.

No dia em que ela partiu.

Eu tinha nove quilos quando nasci e hoje tenho... não sei exatamente.

Sinto o meu corpo pesar sobre a terra, minha cabeça pesar no pescoço. Muitas vezes os meus braços estendem-se pelo chão e atravesso de quatro a sala, o quarto, a copa, a cozinha ou o banheiro, assim, de quatro ou arrastando-me ou, quando muito cansado, rolando, desenrolando o tapete.

Eu via as formigas desaparecendo no espelho do banheiro.

Procurando a pasta e a escova de dente, dei conta do desaparecimento dela, não da pasta ou da escova, dela; da pasta e da escova dela. Deixara um recado lembrando do cuidado para com o refrigerante - sorri e chorei ao mesmo tempo.

É o que todos andam dizendo.

Tem tomado ansiolíticos indiscriminadamente e por conta disso passou quinze dias em sono profundo. Quando acordou recolheu suas coisas e saiu pela janela.

Eu não vi, suspeitei do vulto que senti passar por mim enquanto, logo após preparar as malas, escrevia um bilhete.

Ela está louca.



3 comentários:

Adriana Godoy disse...

Nossa, Rafael! Gostei tanto, tanto. Me senti completamente absorvida por seu texto. beijo

Joana Rabelo disse...

rsrsrs.... Gostei.

Daniela Asth disse...

Bela loucura.

raso

qual atalho, uma curva pro caminho do sossego - mas no fundo é raso; água bate no joelho nada - não é nada nunca foi tão fácil contud...