adaptação do conto de Machado de Assis
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Cenário:
Um auditório. Uma grande mesa com microfones. Câmera com transmissão ao vivo no Data Show. Notebook (ou dvd) conectado ao Data show para exibição do passado. Um espelho grande e quadrado.
Cena I
[ Surge uma figura grotesca, tem o rosto velado e em uma das mãos um espelho e em outra uma cesta com laranjas. Dirige-se ao púlpito entregando laranjas, é o palestrante (ator 2). Ator 1 acende o canteiro de incensos de laranja. Cantam baixinho. ]
Ator 2- [ Descascando a laranja ou brincando com a faca e a laranja. ]
Não admito réplica. Se me replicarem, vou dormir.
Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação.
Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja [ parte a laranja ao meio. ] Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. É preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma... [ Espremendo dentro de um copo as partes da laranja. ] Muda de natureza e de estado. [ Toma o suco. ]
Cena II
[ Blackout. ]
2- [ Subindo na mesa. Tem em mãos uma lanterna. ]
Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Jacobina.
[ Ator 2, com o foco da lanterna, procura por Jacobina (Ator 1) que está no meio da platéia. ]
1 e 2- [Palavras soltas. ]
Provinviciano. Capitalista. Inteligente. Não sem instrução. Astuto. Cáustico.
2-
Era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca.
1-
A discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial.
[ As luzes são acendidas repentinamente. ]
Cena III
2-
Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. O alferes eliminou o homem.
1-
No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte.
2- [ Foca com a lanterna o Ator 1. Posiciona o espelho de mão no rosto.]
Adeus, sobrinho! adeus, alferes!
1-
pediu ao cunhado [foca com uma lanterna o espelho do Ator 2, que reflete a luz para o público. ] que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Mas o certo é que fiquei só [ eco. ], com os poucos escravos da casa. [ Apagam as lanternas. Ator 2 começa a recolher as laranjas. ] Mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão.
2-
Na manhã seguinte
1-
achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. [ Som ampliado do Tic-tac do relógio. ] Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. [Ator 2 termina de recolher as laranjas. ] Corri a casa toda, a senzala, tudo; nenhum ente humano. [ Fim do tic-tac. ] Esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas.
2-
Mas a manhã
1-
passou sem vestígio dele;
2-
à tarde
1-
comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular.
2-
O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana.
1 e 2-
O sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa.
2-
[ Som ampliado do Tic-tac do relógio. ] E então de noite!
1-
Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma...
Dormindo, era outra coisa. [ Fim do tic-tac. ] O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra.
2-
Acho que posso explicar assim esse fenômeno:
Cena IV
[ Imagens do passado são exibidas no Data Show com a narração abaixo. Esta cena poderá ocorrer simultaneamente com a cena V. ]
Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila houve alguns despeitados; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda, dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples...
[ A imagem é interrompida juntamente com a narração. O texto abaixo aparece projetado, ao mesmo tempo escutam-se palavras soltas. ]
Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara de uma fidalga. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais.
Palavras soltas:
Velho. Fineza. Mais. Ouro. Forças. Melhor. Espelho. Espelho. Mãe. Espelho. Muito.
Cena V
[ A imagem transmitida no Data Show volta a ser ao vivo. ]
2-
Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do seu ser novo e único.
1-
Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso.
2-
Desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. No fim de oito dias deu na veneta de olhar para o espelho.
[ Olha para a câmera sobre a televisão e recua.] Vou-me embora. [ Levanta o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olha para o vidro, murmura algumas palavras, tosse sem tosse, sacode a roupa com estrépito. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, olha para o espelho com uma persistência de desesperado, contempla a imagem. Veste a farda de alferes, levanta os olhos para o espelho. Ator 2 executa ações com uma parte da laranja e o espelho. ]
[ Ator 2 espalha as laranjas pela sala. ]
1 e 2 [ Narração em off. Jogo de espelho e câmera. ]
Tudo volta ao que era antes do sono. [ Ator 1 continua a se olhar no espelho, vai de um lado para outro, recua, gesticula, sorri. ] Um ente animado. Pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir... Era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior.
[ Ator 1 e Ator 2 se olham, 10 segundos.]
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